quarta-feira, 24 de junho de 2009

A VELHA CASA ONDE NASCI



1. Aqui começou

Na velha casa onde nasci
o sol entrava de manhã pelo meu quarto
pé ante pé

acordava-me de mansinho
descerrando os ténues tecidos das pálpebras
com dedos de raios matutinos

Penso inúmeras vezes
nesse rés do chão de paredes obesas
estreado pelos meus avós paternos
nos anos efémeros
da República primeira

Era idosa, portanto
aquela casa
onde os meus pais me conceberam
involuntariamente

as paredes e os móveis
contavam restos dum passado
autografado
por insectos verticais
reconhecido pelo tempo
e por quotidianos vendavais

Nos tectos
escancaravam-se fendas do após-guerra
risos sagitais
analfabetismos térmicos
feridas de safanões telúricos

Estavam podres e ressequidas
as tábuas do soalho
a vergarem sob os nossos pés
carpindo sua cinquentenária lamúria

e
durante o sossego da noite
os ratos
serravam ininterruptamente
as moribundas barreiras
da sua liberdade

Caíam rolos de cabelos brancos
pelos ombros da velha casa
tão vulgar
tão sempre na mesma

cegas as paredes
manchados os tectos
leprosos os soalhos
envergonhadas as portas
humilhados nós

Mas uma
inevitável lágrima
vai-se despenhando
silenciosa e autêntica

pela vertente agreste da minha face
em memória
do velho rés do chão
onde o sol entrava logo de manhã
pé ante pé
a fazer-me cócegas nos sonhos

essa velha e querida casa
onde conheci meus pais

2. Família

Evoco os espectros
dos que me foram tão queridos
e partiram com a noite
sabe-se lá para onde

repito passos compassados
trôpegos em emoções e incertezas
relembro timbres de vozes veladas
austeras presenças silenciosas
revejo olhos apagados
pelas sombras de frondosas lágrimas
revivo desgostos sepultados em coragens
recordo imagens de santas ancestrais
envoltas nos rosários das histórias proibidas
respiro cheiros sortílegos de iguarias
para as festas dos dias instantâneos

Repouso
na paz desses enlevos à distância
nesses vagidos que ainda ouço
da minha outra infância

3. Os bichos

Trinados de grão tenor
logo que raiasse a aurora

Caruso - o despertador
dedicava árias de amor
à sua paixão canora

O Lagarto lambia-se com zelo
e por respeito
às funções dos exemplos paternais
brilhava-lhe o pelo
e estava eleito
por todas as gatas dos quintais

Instintivos reflexos
para o galope do perigo
enormes olhos perplexos
entre a ternura e a audácia
era um assustador amigo
o bom do Top
explêndido lobo da Alsácia

4. O Fim

Brotada pelo mórbido desgosto
uma lágrima sinuosa
mergulha no abismo do meu rosto

uma lágrima lastimosa
miserável
vai-se despenhando
inevitável
dolorosa
pela vertente agreste do passado
ainda presente
em memória dessa velha casa
e de tudo o que lhe foi adjacente

essa velha e querida casa
que me ensinou os pontos cardeais
onde
ainda menino
obtive o primeiro favor feminino
e onde conheci meus pais

Lisboa, Setembro 1971



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