terça-feira, 30 de junho de 2009

NÚPCIAS

Uma destas mornas tardes
farto de esperar pelo sol posto
resolvi morrer

a carne putrefacta do meu rosto
ainda ousou ficar a escarnecer
da maior partida que a morte lhe pregou

o enterro foi um passeio saudável
digno da derrota
pena o dia inteiro instável
dum inferno provával
que jamais me abandonou
mas o demónio do inverno
não é nada amável
e a chuva lá ganhou
a bancarrota
do derradeiro jogo da batota

sem remissão desci no cemitério
como um rio descansa sobre a foz
ou uma virgem pretende o seu mistério

então
os vermes lúgubres de cio
cobriram bodas de recém-chegados
e depois a meia voz
num guincho atroz
de sexos encharcados
rugiram:
- enfim
só isto e nós!

Lisboa, Fevereiro 1963

ÁLCOOL

Divago
num vazio de intenções
despreocupado e
oco nas ideias descarnadas
a indigestão do dia-a-dia
arrasta-me para a arena
das batalhas perdidas

vamos queridos amigos
conversemos sobre coisas prenhes de nadas
não acreditem nesta imbecilidade
tão aparente como o arco-íris
da vossa eloquência
tão apócrifa como qualquer conto de fadas
que vos tenham desencantado há anos

tu querida
aproxima-te
que eu pago o sacrifício da tua incompreensão

abre-te
desabafa angústias contagiosas
acorda sensações inebriantes
que o álcool está estupefacto
para ser tragado depois das palavras
espera!

tenho uma barba de sete dias
e por enquanto não me apetece
hibernar na caverna
do teu sexo-taxímetro

Sto. António Caparica, Março 1965

COPOS

Destruíram-no

do que seria o homem medianamente vulgar
jaz um boneco seco e incómodo
aos safanões a si mesmo

líquidos feíssimos
desfizeram-lhe o encanto negligente
dos verdes anos
e adeus
dias inquebráveis

desfigurou-se

pragueja como o vento
pune pelos fracos
esgrime justiças contra espelhos
e a loucura já especula
com trémulos sentidos

pouco lhe resta
- um tudo-nada -
para sorver o vil aperitivo
contra-veneno ignóbil
das situações péssimas

Lisboa, Dezembro 1964

NÃO DEVO

Não devo ser prático
nem simpático
sequer

não devo ser mulher
nem devo ser homem inteiro
devo ser meio
deve meio haver
devo ser feio

por isso
não devo ser D. Sebastião
nem devo desfazer o nevoeiro
devo ser em vão

por isso
não receio o treze à sexta
não cinjo cinturas de vespa
nem fujo à aventura quixotesca
não devo ser honesto

por isso
não risco
não me empresto
não petisco
não aquilo não isto
não presto
nem arrisco

por isso
não trago o indigesto
não arrumo o protesto
nem mastigo "o antes" do patriotismo
não devo ser simples nem composto

por isso
não evito o mau gesto
não aceito o meu gosto
não lamento o mal gasto
nem a solidão de tudo o resto
não devo ser diferente

nem galante
interessante
inteligente
não devo ser o tal esposo

nem razoável
nem tolerante
nem tolerável ou indulgente
não devo ser insosso

por isso
não agradeço o agradável
nem abandono o que não posso

não devo ser gente

por isso
não sou nada quarto nem crescente
não privo
não provo
não dobro
não desarmo
não sirvo
não devo ser sóbrio

por isso
não valho a obra
não embrulho o micróbio
não rejeito o ébrio
não recebo o tédio
nem o verdete do cobre
nem a gorjeta do pobre
nem o veneno da cobra
nem o esqueleto do nobre
não devo ser normal

por isso
não me seduz a vida habitual
nem é durante o dia que manobra
a escassa razão que me sobra

por isso
não devo deixar de ser assim
um resto de pouco
e até ao fim
o derradeiro louco
de mim

Tercena, Fevereiro 1978

PRECE

No templo penitenciário

Jesus

jaz presidiário


Disse revolução


E morreu castigado

numa injustiça-cruz

esculpida

em pau-religião

estilo plenário


Fica deste lado

Cristo:

és cadastrado

como nós

irmão

Valladolid, Junho 67

A BOMBA

Revolvo o pensamento

à procura de rima

para este céu cinzento


Lembrei-me de Hiroshima

e uma lágrima, leio

em língua oriental

Chorou-a o Mundo, cheio

de dor Universal

e más recordações


O mais amargo aroma

pôs o ponto final

neste poema em coma

Terrível e oblíquo

ex-herói sem razão

esqueleto dum idioma


e vingador iníquo

da iníqua missão

UMA ROSA

Nossa luta
é um botão
de rosa
avermelhado

Corrói as grades
da prisão
ansiosa
por ser a evasão
do condenado

PRECE DA MINHA NOITE

Mais pragas lhe deito
mais raivas me esqueço
estendo-me no leito
arrefeço
volto-me do avesso
se não me sirvo de lençol
pareço
renego o seu dó bemol
escarneço
fico tranquilo e infeliz
embora um tudo-nada satisfeito
com o lívido sol
do meu ídolo de gesso
ofendo-o e peço bis
viro-lhe as costas com todo o respeito
agradeço
o mal que me fiz
as honras que lhe tenho feito
e adormeço

Lisboa, Maio 1972

UM POEMA

Um poema
tão singelo quanto possa
tão breve e completo quanto saiba

um poema isolado
que em nossa
estrita dimensão caiba

um poema esbarrado
no pó peculiar
da pátria invertida

um poema sentido
como o sangue vivo
dum organismo celular
circulante e primitivo

um poema sem magia
para não ficar ao lado
da cósmica Poesia

um poema
modesto e maravilhado
por ser parente afastado
dos cunhados com a sua pena

Tercena, Maio 1978




AU CINÉMA

Mostrava meias azuis por demais
o pescoço cheirava a framboesa
a boca, às brisas dos pinhais
os olhos a verde-mar

no peito dois carnavais
de luzes a acenar
convites de pureza
e a respirarem esféricos sinais
de rija redondeza

segredei na escuridão acesa
bijou
pombinha
petit-chou
e concluí à - portuguesa -
que era "canja de galinha"

mas...
- onde te meteste tu
francesa minha?

Paris, Março 1967

GEOGRAFIA LUSITANA

Ao sul há os proletários
o calor com os comunistas
as charnecas em conquistas
os mais latifundiários
as praias para banhistas
os teatros das coristas
a cidade sobre horários
a fome e os vigaristas
os políticos vigários
a revolta por falsários
os lobos capitalistas
os ideais sedentários
a tourada em cornos vários
as revoluções egoístas
as greves dos operários

Ao norte há os santuários
os terços evangelistas
as lendas entre rosários
o vinho sobre os artistas
os senhores reaccionários
as montanhas moralistas
o frio para os proletários
os incêndios terroristas
os ódios incendiários
o afonso das conquistas
a luta e os operários
os escritores revolucionários
também há capitalistas
poderes latifundiários
e portanto, comunistas

Tercena, Fevereiro 1976

POR CONCLUIR

Porque escrevo?

Serei cobarde ou louco
para me segredar nestes caracteres
aquilo que não fui capaz de confessar
noutra voz?

Porque escrevo?

Pela vaidade
de um certo alheamento ao mundo das pessoas normais
que cumprem os dias
como um horário de trabalho forçado?

Porque escrevo?

Dar-me-á este contacto mecânico
da mão espreguiçada da palavra
alguma indemnização ou lenitivo
para amenizar a má vontade com que me tolero?

Porque escrevo?

Conseguirei resolver o enigma
invocando o estafado subterfúgio da "necessidade psicológica"
sobejamente verdadeiro e fácil
para iludir cepticismos literários?

Porque escrevo?

Será que me perdi
no labirinto imenso da criação onde vagabundeio
armado em caçador de ideias a fugirem-me sempre mais
não sem que as persiga
a pensar noutras realidades?

Exactamente

Viana do Castelo, Maio 1963

ASSUNTO NOSSO

Que podem esses intrusos
suspeitos sermões clericais
ou bazucas dos cotim-generais
contra castelos da tua Poesia
se com ela destapas obesos abusos
e revives repleto na mais
imcomparavelmente doce companhia
que nos furtou também à monotonia
de vagos optimismos vegetais?

Para quê tantos cínicos vernizes
em severos comentários obtusos
afectos aos vaguíssimos lusos
peninsulares países
se as soberbas bebedeiras temporais
volteiam como imensos parafusos
que embriagam sentenças ou juízes
e se este universo dos tormentos imortais
onde fervilham maldições banais
tatua no papel as cicatrizes
de vinganças sobrenaturais?

Lisboa, Maio 1972

VÍCIO

Se não expelires ao menos um instante
de delírio reconfortante
num dia excepcional
para que brilhas tu
mulher cristal?

Se não forjares um pecado original
como as heroínas dum bordel
ou de Scott Fitzgerald
para que meditas tu
mulher cinzel?

Se não compuseres na tua sombra
nocturnos de pompa
e circunstância
para que existes tu
mulher substância?

Tercena, Agosto 1979

TU

Tu
vernáculo Vladimir
obreiro da Revolução admirável
que experimentou o mundo
e colheu em sobressalto alguns déspotas
com outros tantos deuses humanamente egoístas
tu
encurralaste o povo para cumprir um sagrado dever
até então jamais concluído
tu
imenso Ilyitch
profeta e mestre dessa transformação decisiva
conseguiste estrelas a cintilar
sobre os destinos da Mãe Pátria oprimida
mas por tuas mãos tão libertada
que hoje até se atreve a demais astros
tu
último Ulianov
voz activa a soletrar lucidez e desespero
desataste braços
multiplicaste orgulhos obreiros
carregaste-os de palavras universais
e conseguiste essa união excepcional

(num destes dias a que chamam feriados
talvez para que as pessoas se sintam
ainda mais abandonadas
fiquei tempos parado junto à montra
duma loja de vender bichos
enquanto estranhos silêncios de ócios
alagavam a rua deserta
interdita ao insólito burburinho circulante
dos trânsitos desordenados
e um sol barbaramente implacável
batia de chapa contra o vidro da montra
daquele cubículo de impingir bichos
onde as aves emudeciam sufocantes tristezas
e o pungente olhar dum cão
me pedia nem sei o quê...)

não contenho uma voz
como a de Mayakovsky
mas garanto que só alguém como foste
tu
Léo Lenine
faria Justiça aos pobres animais encarcerados
pelas lamentáveis minorias
das cruéis multidões escravizadas

Lisboa, Setembro 1965

LUAR

A lua beijava o leito
naquela noite cálida
serena

envolvia-nos no seu carinho
feito de penumbra doce e amena

vultos jaziam envoltos
na prata do luar
e pensamentos revoltos
chocavam-se pelo ar

silhuetas brancas e pretas
desenhavam nas paredes
e os cantos
tinham encantos sinuosos
maravilhosos reflexos
de murmúrios profundos

dialogavam sexos
- duas bocas presas
em mútuas rezas
a deuses de outros mundos

vestígio das supremas belezas
suspensas num prodígio
de segundos

Lisboa, Agosto 1959

SEREIA

Estava lá por estar
nessa quinta-feira
dum conhecimanto

sobranceira ao mar
e sentada à beira
do seu pensamento

a cor dos cabelos
era um negro sério
a imitar veludo

e os olhos só vê-los
densos num mistério
mais raro que tudo

na boca morena
lábios de boneca
um beijo lhe ponho

sete horas, que pena
fim da linha recta
princípio do sonho

Estoril, Agosto 1958

3/4

É tão triste esta dor
de cegarmos a vida
sem a luz duma flor
que nos perfume a ferida

Faz pena e custa tanto
lidar com certa gente
que usa nariz de santo
e a rezar nos mente

Que ardam de azedume
os que nos humilharam
se os queimar como lume
foi lume que atearam

Guarda, Março 1965

VÍTIMA

Despreocupada vai
ziguezagueando indo
no passeio da sua vaidade adolescente
evitando sol que a apalpe
sombra que a desbote
dedos que a deformem

Ei-la
firme e aparente
digna e transigente
no seu passinho elegante
que transportará o minúsculo orgulho
de prostituta grátis
até ao espaço interior dum notável último modelo
conduzido por qualquer imbecil nacionalista
e ultra-conservador

Numa próxima ocasião
ele a recomendará
no círculo dos amigos de classe
como a melhor aquisição da época
para o delírio aristocrático-sexual
das suas vidas insignificantemente nulas
e criminosas

Portimão, Julho 1963

DECRETO

Que ninguém
durma um sono despreocupado
nem possa descansar sem
verter um nojo pungente
na boca deste mundo mascarado
de crente

que ninguém
nenhum homem atento
verdadeiro
adormeça o motor do consciente
sobre o macio esquecimento
do travesseiro

que ninguém
ninguém se deite a esquecer
o crime pesado como chumbo
sem ser obrigado a saber
que existem crianças neste mundo
a sofrer

que ninguém
mais manifeste um sentimento
mate sedes, alegrias ou desejos
sem responder em vendavais ao vento
cara a cara

porque
longe dos filhos e dos beijos
morreu Ernesto "Che" Guevara

Lisboa, Outubro 1967

A ERA INFALÍVEL

Acabou-se
o que lá vai, lá vai

judeu o meu filho fosse
socialista fosse o pai

O Reich
desmoronou-se
graças a deus tudo cai

polaco o meu filho fosse
jugoslavo fosse o pai

o mundo
desanuviou-se
crimes de guerra, olvidai

eslavo meu filho fosse
ou que russo fosse o pai

a humanidade
não espera
por cepticismos de fé

judeu Jesus Cristo era
proletário, Cristo é

Düsseldorf, Junho 1967



SEM EFEITO

Quando ressuscitavam versos das areias
gostavas de bordar inspirações marinhas
escolhias conchas sempre brancas
para enfeitares os cachos de palavras
e fazias autênticos penteados

prometi-te então um poema
para o dia de aniversário
tu sorriste e respondeste-me
com recantos admiráveis desse corpo
enquanto os teus olhos formosos e celestes
divagavam mares por cima dos meus ombros

faíscou então
aquele relâmpago traiçoeiro
que me deixou de boca aberta
a ver-te reviver noutros braços

por isso
dou o dito por não dito
sou vingativo
já não escrevo poema nenhum
fecho esta porta que dava para ti
serpente venenosa
peixe-aranha
grande cínica

mas também

doce
terna
absoluta
e exacta mulher

Lisboa, Fevereiro 1962

CONCERTO

Nessa manhã ainda adolescente
que nos seguiu os passos
fugimos do ridículo constante
- recordas-te?
o dia era recente
a Natureza dava-nos abraços
... foi tudo num instante

em silêncios de ouro nos trocámos
falámos sem dizer
esquecemo-nos até
mas por fim conversámos
pusémo-nos a ler
bebemos um café

nessa manhã ainda adolescente
que nos seguiu os passos
fugimos do ridículo constante
- recordas-te?
os pássaros num allegro permanente
e as árvores regiam os compassos
da nossa melodia penetrante

Lisboa, Agosto 1961

LISBOA

Cidade
dos saudosismos devotos
dos seculares terramotos
dos santos aburguesados

Saudade
dos anos fora de portas
dos ripanços pelas hortas
dos hábitos ultrapassados

Pintura
dos frescos becos de Alfama
dos barcos que o Tejo chama
dos fados empedernidos

Ternura
dos vasos nos varandins
das crianças nos jardins
das ideias nos ruídos

Miséria
dos anos da concordata
dos tantos bairros de lata
dos prostíbulos nas veias

Matéria
das políticas em prol
das gírias do futebol
das revoluções alheias

Cartaz
das praias em frontispício
das noites iguais ao vício
dos hospitais purgatórios

Tenaz
das pielas sociais
das vielas criminais
dos proscritos dormitórios

Império
dos cemitérios viventes
das naus aos descobrimentos
dos feitos e das histótrias

Mistério
dos que navegam nas vidas
das leis e dos suicidas
das traições e das glórias

Passado
das uniões espontâneas
das lutas subterrâneas
das frentes clandestinas

Mercado
das bandeiras em leilões
dos votos nas eleições
das ilusões intestinas

Coroa
dos espinhos que usufruo
dos dentes do aqueduto
dos rosários e da grei

Lisboa
das paixões antes rancor
dos ódios depois Amor
e dos filhos que gerei

Lisboa, 18 Janeiro 1980