terça-feira, 30 de junho de 2009

NÃO DEVO

Não devo ser prático
nem simpático
sequer

não devo ser mulher
nem devo ser homem inteiro
devo ser meio
deve meio haver
devo ser feio

por isso
não devo ser D. Sebastião
nem devo desfazer o nevoeiro
devo ser em vão

por isso
não receio o treze à sexta
não cinjo cinturas de vespa
nem fujo à aventura quixotesca
não devo ser honesto

por isso
não risco
não me empresto
não petisco
não aquilo não isto
não presto
nem arrisco

por isso
não trago o indigesto
não arrumo o protesto
nem mastigo "o antes" do patriotismo
não devo ser simples nem composto

por isso
não evito o mau gesto
não aceito o meu gosto
não lamento o mal gasto
nem a solidão de tudo o resto
não devo ser diferente

nem galante
interessante
inteligente
não devo ser o tal esposo

nem razoável
nem tolerante
nem tolerável ou indulgente
não devo ser insosso

por isso
não agradeço o agradável
nem abandono o que não posso

não devo ser gente

por isso
não sou nada quarto nem crescente
não privo
não provo
não dobro
não desarmo
não sirvo
não devo ser sóbrio

por isso
não valho a obra
não embrulho o micróbio
não rejeito o ébrio
não recebo o tédio
nem o verdete do cobre
nem a gorjeta do pobre
nem o veneno da cobra
nem o esqueleto do nobre
não devo ser normal

por isso
não me seduz a vida habitual
nem é durante o dia que manobra
a escassa razão que me sobra

por isso
não devo deixar de ser assim
um resto de pouco
e até ao fim
o derradeiro louco
de mim

Tercena, Fevereiro 1978

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