quinta-feira, 25 de junho de 2009

TETRALOGIA DO AMOR FILIAL

I

Aqueles dias consumados
pareciam insossos por demais
horas em traços rectilíneos riscados
geometricamente iguais
como neuróticos quadrados

agora
são profundas cicatrizes
resmas de projectos rasgados
ecos dos risos musicais
unhas sobre vernizes
saudades monumentais
bordadas a cruéis matizes
que vibram nestes riscos renegados
facadas de punhais

II

Uma vez apareceste com perdizes
chegaste todo "babado"
não cabias em ti como os petizes
que não deram erros no ditado
- onde houve já não me dizes
almoço mais requintado?

comia-se bem e depois era sagrado
ainda com gula ou mesmo sem
- para ovos não era outro quem -
quente mexido ou estrelado
por fim bebias o café
vertido num cheiro teu
fumegante e perfumado

eu
ia esperando cheio de fé
um tanto desanimado
mas quando te via de maré
fazia-te logo saber
do célebre jogo a ser jogado
que gostava tanto se pudesse ser
o nosso campeonato era a valer
e os professores até
com outros pais iriam ver

coçavas na cabeça um bom bocado
- estavas a resolver -
porém eterno apaixonado
pelas questões de bola e pontapé
autorizavas:
- Zé
vai lá e toma cuidado

pedia-te licença
levantava-me veloz - ele aí vai!
como uma seta
e tu querido pai
satisfeito por me veres feliz
sorvias o resto da bebida preta
lias no jornal mentiras do planeta
punhas-te à distância da indecência
e torcias o nariz

III

Quando as notas eram más
andava mesmo amedrontado
e tu calado
vias a vida andar mais para trás
e todos o sentíamos tão bem
rezava em silêncio mas ninguém
queria ser meu aliado

o castigo dançava num vai-vém
interpretando esse velhíssimo bailado
do réu punindo o culpado
depois daquele entrudo
o pior tinha passado
mau grado
as indiscutíveis zangas e também sobretudo
o magro ordenado

IV

Domingo era o tal único dia
quási cem por cento admirável
de toda a insípida semana
quando o sol resolvia ser prestável
uma luz no ar rescendia
convidativa e profana
a encher-te desse aroma insuportável
chamado bom-humor

muito tardio acordavas
alheio aos vagidos matinais
e tonto de sonhos tacteavas
consentimentos abdominais
oníricas retribuições sexuais
secretas rendições do Amor

enchias-te de desejo e saboreavas
mútuos resquícios do pudor
pertencia-te a ilusão que dominavas
doméstico invasor

delícias maravilhosas mas fatais
sob o impávido cobertor de lã
tentações dominicais
soberbos pecados divinais
milagres de satã

"refrains" musicais
que já sabíamos de cor
enchiam de euforias a manhã
confundiam-se gemidos sensuais
com êxtases finais
dos cansaços liquefeitos em suor
então eras o conquistador
e a mãe a castelã.

Anti-madrugador
levantavas-te quase ao meio-dia
e parece que ouço esse rumor
o ruído severo dos teus passos
no grande corredor
e no oco eco dos espaços

discutias com o velho esquentador
obstinado numa semanal teimosia
de negar o banho ao seu senhor
por fim eu assistia
ao brado gazeificado de revolta
do vencido servidor aceso à revelia
e condenado a perpétuas nuvens de vapor...

verde
branco
negro
três cores foram razões
da nossa pré-história

vivemos as loucas seduções
desses momentos
extravasámos emoções e incitamentos
aprendemos urros das multidões
vivemos selvas de sentimentos
dum povo de homens-meninos
sem outro escape para os sofrimentos
de todos os dias apenas vespertinos

recolhemos centenas de pueris comoções
ovacionámos brutais exibições
guardadas nos retalhos da memória

uníssonos hinos cantados
pelos nossos leões antepasados
irreprimíveis desatinos
que festejavam mais uma vitória
da equipa dos cinco violinos!

Lisboa, Julho 1971

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