quinta-feira, 25 de junho de 2009

A NEUROSE ARITMÉTICA

Palavra de honra
nem sei se conte

só visto

além do mais
assalta-me um certo receio
- chamemos-lhe antes preconceito -
de me estampar no ridículo
da vossa insignificante opinião
mas o caso
é que me acontece matematicamente
uma quotidiana obcessão dos números
vou contar:

quando saio de casa
estabeleço o limite do tempo em que permaneço
dentro do elevador
desde o quarto andar até ao rés-do-chão
e principio a contagem
a partir do movimento inicial
descendente

no momento da paragem
consigo atingir o número
cento e cinquenta e três
e fico a saber cientificamente
que tantos anos somarão as idades dos meus cinco filhos
no dia em que eu - por fim - decida morrer
ora
- resolvo mentalmente -
se o ALEP tem vinte anos
o JERN dezanove
o SEJO nove
a DULMA quatro
e a PAMAR vai fazer um
quer dizer que as idades progénitas somam
zero
nove mais nove dezoito
mais quatro
dois
e vão dois
mais dois quatro
e um cinco
isso
pois
actualmente os meus filhos
contam cinquenta e dois anos no conjunto das idades
- para cento e cinquenta e três
sobram cento e um
arredondo para cem anos
(num rasgo altamente suicida
desfaço-me de setenta e três dias
por cada filho)
a dividir por cinco
dá vinte anos para cada
assim
no dia do meu passamento
o ALEP terá quarenta anos
o JERN trinta e nove
o SEJO vinte e nove
a DULMA vinte e quatro
a PAMAR vinte

e confiro

quarenta
mais trinta e nove
mais vinte e nove
mais vinte e quatro
mais vinte
é igual a

cento e cinquenta e dois

fico descansado nesse incógnito dia
quanto a tal assunto
porque me certifico - egocentrista - que esticarei o pernil
aos sessenta e um anos

meus filhos serão maiores
e muito mais vacinados
estarão treinados no amor
decerto prontos para enfrentar a vida
que para isso terão idade

convém esclarecer que faço um compasso de espera
(aí uns dois minutos)
entre o elevador e a porta de saída do abominável imóvel
a fim de conferir os resultados destas ginásticas mentais
e
só o treino intensivo e diário a que sou obrigado a submeter-me
me permite realizá-las em tão curto espaço de tempo
ponho-me em marcha
e inicio outro nível do jogo
isto é
recolho na caixa craniana o número de passos
até à estação do caminho de ferro ferrugento
já fui capaz de alcaçar os quinhentos e oitenta
- minúsculas passadas o mais possível -
e mentalizo-me
que tantas serão as notas de mil escudos
do meu ordenado durante o espaço de um ano
sem eliminar os meses gratificantes
das férias e natal

ora muito bem

quinhentos e oitenta
a dividir por
catorze
há quatro...
vezes quatro

dezasseis
para dezoito
dois
(e vai um)

quatro
vezes um
quatro
mais um
é igual a
cinco
para cinco
nada

(baixa zero)

um
vezes quatro
é igual a
quatro
para dez
seis
(e vai um)
um
vezes um
é igual a
um
mais um
é igual a
dois
para dois
nada

respiro aliviado!
ainda hei-de apertar quarenta e um contos de reis
todos os meses nas unhas!
(e sobram seis mil escudos
provavelmente oriundos de qualquer ridículo rendimento)
resolvo eu
muito senhor do vencimento
sem reparar que nessa precisa altura
vou andando com os bolsos limpos

quando o combóio inicia a marcha
para o ainda mais tédio
ligo a máquina dos algarismos mentais
e pelo modo como as pessoas me observam
devo deixar transparecer sinais de aritmética loucura
talvez estampada no raciocínio dos olhos arregalados
ou por ir mexendo maquinalmente os lábios
durante a histérica contagem
disfarço
simulo ler o jornal
e na falta do sórdido papel fecho os olhos
finjo dormitar
embora prefira seguir
pelo vidro da janela sujíssima
uma cega paisagem cronométrica

até à Amadora chego aos quinhentos
em Benfica estou nos mil
na paragem de Campolide caio nos mil e seiscentos
e no términus do Rossio
realizo os dois mil trezentos e vinte
- record! -
depois
a caminho do emprego
vou rememorando todos os entes que estimo
(contando comigo)
o que perfaz um total de vinte e quatro
digamos vinte e cinco mamíferos
para ressalvar qualquer esquecimento involuntário
ou honrosa excepção

sempre a caminho do suplício
multiplico por oitenta

oito
vezes cinco
quarenta
(e vão quatro)

oito
vezes dois
dezasseis
mais quatro
é igual a
vinte

(baixa zero)

dois mil anos
hão-de contar em conjunto
as translações dos vinte e cinco eleitos
se resistirem em média até aos oitenta anos
e sobram ainda trezentas e vinte monótonas primaveras
prioritariamente distribuídas pelos meus prováveis netos
ou - sei lá - também por outro ser que pai me chame
pois os desígnios da cibernética
já tacteiam sexos programados
após o calcorreante cálculo
restam exíguos espaços de tempo e passos
para encetar um derradeiro exercício
desde a embocadura da Rua do Ouro
até ao preciso local onde me propus perder mais um dia

agarro os setecentos e dezoito
- outro record absoluto -
e decido
(consoante a disposição transitória)
esses exactos livros poder vir a comprar
tais pontos valerem as disciplinas
encornadas pelos meus filhos
que a tantas indiscutíveis vitórias do meu clube assistir
ou quantas mais vezes farei porventura
amor voluntário
tudo isto apenas
num estrito períodode treze anos comuns
dada a reduzida quilometragem
e a escassa esperança de vida

o psiquiatra
acusou-me dum egoísmo exacerbado
muito doutoralmente
criticou a ausência de discernimento
propôs psicanálise em grupo
chamou-me hipersensível
referiu-se aos traumas das doenças sociais
susteve teses sobre esquizofrenia
esqueceu Freud
quis receitar drageias catalíticas
por fim
poude cobrar o preço da consulta

inútil esbanjamento

esfrangalhei a folha garatujada
porque o néscio neurologista
alérgico a determinadas transformações das sociedades
guardou
ou não pretendeu explicar
qual seria o remédio para a cura radical
deste estranho mal
aritmético

Tercena, Setembro 1977



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