quarta-feira, 24 de junho de 2009

SAUDAÇÃO A ÁLVARO DE CAMPOS

Eh! Eh! Eh!
Oh! Oh! Oh!

meu
fraterno humano desprezível
como o cilíndrico cigarro que avolumo!

Eh!

das profundezas desse espaço impossível semelhante
me pronuncio liberto e submerso pela extenuante noite sinuosa
para te vir provocar
total poeta incorrigível
discípulo imposto a Walt Whitman
escravizado déspota à vontade da frustração propositada
heterónimo cronómetro de outra lúgubre existência
íncubo suplício premeditado no ventre da Poesia

Eh! Oh!

te saúdo
vício imprescindível da leitura repleta
tal qual tu
súbito síndroma das trevas
assim homenageio o sublime pederasta
duma universal inacessível pátria
violada nos píncaros de qualquer árvore mágica
também venero os verdejantes templos longuíssimos
e nem pejo prevejo ao risco de ter continuado a existir
por alturas da tua morte entronizada
(dois anos por vagos abismos hesitaste
absorto em grossos intestinos infinitos
à espera do impróprio invólucro terreno
- e tantos outros incertos de nascerem...)
a Whitman e a ti igual me considero
dessa implícita vaidade sou convicto
porque ignoro ríspidas distâncias
e sobretudo porque a humana inconsciência dos valores
se revela na ordem das grandezas astronómicas

Eh!

a ti louvo e renego
"modus vivendi" das brutais imposições herméticas
átomo desintegrado em adversa substância
nuvem de siderais sexos apopléticos
te amo e persigo e reencarno
inventado engenheiro por Glasgow
sanguíneo génio da razão repreensível
curvado pavor de navais palavras
distante divinal irmão
inverso gémeo

Ehhh! Ohhh!

te expulso e contenho
demónio do meu íntimo
como o espírito do cigarro que respiro!
(que se mantenha o sofrimento céptico
enquanto não raiar o supremo dia
ejaculado pelo raciocínio copulativo de Henry Miller
em que os homens se dignem alcançar
frenesis de sonhos transmissíveis
onde se saboreie o paladar abstracto da imagem permissiva
e que de tais ficções possamos entretanto
dúbios conhecimentos na carne conseguidos
pela mente assimilados
e grávidos poetas sejamos de mortais maravilhas posteriores)

Eh!

te afirmo e pergunto
se jamais o poeta há-de incorrer
no terror repetitivo da palavra
ou existirá mundo onde a mensagem do poeta
repouse exausta
se Poesia nasce da abelha circundante ao cio da flor
se ao poeta se comparam os cães
quando mijam rente aos tentáculos das árvores
se para a Poesia rasgam garras os pés tríplices das águias
se pela Poesia se batem as asas do albatroz imortal por Baudelaire
se todos os bichos abrangem mimetismos de Poesia
quando naufragam nos buracos negros das paixões
se palavra é a estrénua luta
o pré-histórico grunhido do poeta
ou se na palavra ruge o lamento animalesco
constante e primitivo do poeta
ou se de poeta o homem se mascara
desde os primórdios de Neanderthal
aos auspícios de Lascaux!

Eh!

te asseguro e interrogo
se na Poesia resplandecem lúcidas predestinações de louco
ou raízes genéticas brotamdo útero espermático da Poesia
se prolíferas sementes vingam nas humanas feras
cingidas em nocturnos sortilégios
se fulminante e suprema se projecta a Poesia
sobre quaisquer noções de escalas hierárquicas
e com todas as aparentes luminescências sociais
discute a libérrima Poesia
na segunda pessoa do singular
afirmando - nem tu eminência
contra ti imperador
sem receios de sucumbir contaminada
por venéreas unhas susceptíveis
se a eterna invulnerável Poesia
pode ser conjugada de outro modo
ao dizer de ti Marx
por ti Engels
contigo Lenine
quando trata por tu e como filhos estremecidos
todos os que viveram bruscamente heróicos
em busca da teórica igualdade
deturpada pelos sujeitos a morganáticas homenagens
ou quando de Satã rejeita descomunais ofertas
como se promessas dum outro deus apedrejasse!

Eh!

te procuro e obedeço
pois é por crer em cataclismos de dimensão sagrada
que te adoro
perverso Zeus contemporâneo
estro demolidor da vontade ressuscitada!

Ehhh! Ohhh!

te temo e reescrevo e aproximo
intemporal émulo de Verlaine e Rimbaud
te odeio e obtenho
sagrado verso de Puskine
te decoro e releio
tormento de Maiakowski
te perfuro e perjuro
ternura de Whitman
te acompanho e comparo e desespero
sombra de Sena
rosto de Andrade
rasgo de Torga
te sigo e prossigo e pertenço
plasma de Apollnaire
punho de Almada
carne de Pessoa
te respeito e acrescento e repito
sem a menor partícula de pudor literário
te recito e abomino e assimilo
como se a voz dum instinto ininterrupto
me segredasse sabedorias monstruosas
acima de qualquer humanidade habitual!

Eh!

momentâneo rival do meu ego
te afasto e apreendo
cristalino suicídio das ideias
livre pensadpr antípoda do verbo!

Ehhh! Ohhh!

te adivinho
encostado ao mal estar da não presença
a ti me não canso de buscar
te compreendo e limito
ocasional proletário que empurraste maquinismos da ode saudosista
para além dos espaços possíveis
te refiro e repito
máscara da impulsão hipnótica
face ao heterónimo maligno
crosta sobre a vulva dum tumor irremovível
te disperso e desposo
vertigem das águas virgens montanhosas
e de todas as naturezas despenhadas
te amordaço e desvendo
por dentro ou para além dos prazeres moribundos
do mesmo modo que ousou Dostoievski
esse outro dono e senhor das mínimas duplas personalidades
desde o reverso de Raskolnikov
até ao triângulo dos Karamazov
como Schubert e Mozart as musicaram
através de orquestrais imensidões
ou como as desnudaram Gaugin
Debussy e Modigliani
em hectares de formas predispostas
te sustento e me sustenho
sobre acordes da tua ideia extemporânea
com improvisações de Parker e Picasso
(sax alto bramindo horrores de Guernica)

Ehhh! Ohhh!

te pressinto e invoco
amarrado ao susto do heterónimo
te chamo
legendário ciclope digno de Whitman
conforme tiveste a volúpia de assumir
te semeio e escolho
sósia de Ulisses bramindo por lusitanas mitologias
imaginária estátua pousada ao fálico sol de Lisboa!

Eh! Oh!

te corrompo e sagro
consoante pude e mais não alcanço
mas não imponho tréguas
ao peso contundente dessa mole impressa
nas crateras dum rancor apaixonante
de ti me aproveito
por ti me não redimo e to confesso
merda das letras que sou
submisso às idiossincrasias de signos e astros
te venero e saúdo definitivamente!

Ehhh! Ohhh!

meu
fraterno humano desprezível!

- que deuses
te protejam sobre os tempos
que te consumam
os saturnais fogos
por ti incendiados

como a certeza do cigarro que absolvo!

Outubro 1982



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