a este derradeiro abrigo batido pelo vento
vazio de solidariedade
onde nem sequer envelhecem whiskys e gins
e se permitem melomanias dum louco
arrastado por torrentes de mesquinhez racional
chegou o aquário
ao ermo da má vizinhança
fustigado pelo vento de uma cálida dúvida outonal
onde a extensa Música agride pigmeus
cumpridores de leis afónicas

manobradas contra mim
mas que afinal atingem
Bach Tchaikovsky Mussorgski e demais
poetas sublimados na maldição
chegou o aquário
ao espaço restrito a que eu
perfeito imbecil
costumo pomposamente chamar
a minha casa!
pois bem
o aquário lá ficou encolhido num buraco
a simular uma fronteira entre o "hall" dos pés sujos
e a ridícula sala de premir a tecla do caixote televisivo
enquanto se vão assimilando calorias descongeladas
contém trinta peixes pseudo-tropicais
diversas plantas aquáticas dum verde plástico
vem munido de filtro e tubo de oxigénio
- pouco menos que impecável
o recente aquário sepulto neste decisivo lar
sacudido por rajadas de sobressaltos
onde experimento sumptuosos desânimos
e a que chamo por presunção néscia
a minha casa!
exibe minerais vulcânicos
vermelhos caracóis ambientados
e os tais trinta peixes multicolores
o aquário a fingir realidade
balança em equilíbrios biológicos
esse aquário iluminado por um sol fluorescente
de quinze velas
tem a minha atenção diária
o meu carinho
os meus cuidados paternalistas
a minha brutal admiração
o meu orgulho necessário
o aquário adquirido com a fortuna
do desagregado familiar
mal desponta o dia
entorno um milagre comestível
para os peixes do aquário
e mesmo quando estou lúcido
nunca me esqueço de alimentar os preciosos seres
despenhando sobre o nível de água
minúsculas lâminas "Made in Germany"
saturadas de ovos de salmão
plankton
cyclops
proteínas
algas e
- sabe-se lá -
liamba ou esperma de peixe
nas pretensas profundezas tropicais
à temperatura de vinte e cinco graus centígrados
impostos pelo termostato
volteiam simulacros de existência os peixinhos
do aquário que chegou
abraçado pelas manápulas dum sujeito mediano
em estatura e intenções
vão nadando ilusões os peixinhos pigmentados
encarcerados no aquário que chegou aos penates
das mornas vontades divinais
convertidos num extinto templo
a que costumo maquiavelicamente chamar
a minha casa!
e pronto
contei a história elementar do aquário ressuscitado
mas
para completar esta séria brincadeira de mau gosto
falta acrescentar uma breve curiosidade final:
- é que eu converso com os encantadores peixinhos
do meu possuído aquário!
cada manhã
depois de os empanturrar com rações "Made in West Germany"
falo-lhes assim:
- ouçam peixinhos multicolores
vós dependeis de mim
e temei tal sujeição
não esqueçais
eu sou vosso senhor e proprietário que vos alimenta
sou o vosso maná sobrenatural
despejado duma caixinha "Made in West Germany"
eu posso matar-vos de fome se muito bem entender
(ou talvez não)
basta deixar de virar matinalmente
para o nível da vossa água
- decerto o vosso céu -
este recipiente repleto de flocos científicos
altamente nutritivos
"Made in West Germany"
eu posso contaminar-vos
basta infestar de ácidos biliosos ou venenos blenorrágicos
esses cinquenta litros de água
duma fonte que nem sequer é a do vosso rio originário
mas que vós
peixinhos ignorantes e pedantemente comilões
artificialmente tropicais
julgais ser
o vosso universo
eu posso asfixiar-vos
basta humanamente decidir
cortar-vos o oxigénio arrotado em bolhas ocasionais
para esse semi-ambiente
que vós confundis com
Natureza
eu posso envenenar-vos
basta se bem me apetecer
(ou talvez não)
acercar-me de vós no cerne de uma qualquer inspiração punitiva
e atingir-vos com jactos de um insecticida
quem sabe também "Made in West Germany"
eu até podia provocarum doméstico maremoto
no aquário que vós
demasiado crentes peixinhos
cuidais ser o leito do Amazonas
do Yang-Sekiang
do Mekong
bastava arremessar contra o vidro aparentemente rectangular
um vulgar objecto contundente
(que vós aceitaríeis como cósmicos cataclismos
de buracos negros)
para que fosseis precipitados pelo fluxo insignificante
- mas perante vós gigantesco -
desses cinquenta litros de água
no terror do desconhecido
sobre um caos tenebroso e mortal de outras galáxias
que afinal apenas se resume
- digo-vos eu vosso senhor alimentador
omni poderoso e benevolente -
à alcatifa da sala de consumir tele-enlatados
que é no fim de contas o soalho dum reles compartimento
onde o vosso supremo e catalogado criador
mastiga fins-de-semana infra-burgueses
aqui está
devotos peixinhos
como a minha soberana solidão
reina sobre a vossa líquida existência
e como me deveis venerar
aqui provo
quanto o vosso bem nadar
entre grutas de lavas petrificadas
o vosso constante devaneio embrenhado
pelas cíclicas plantas berrantes
o vosso direito essencial
de mim é dependente
aqui deixo
como a minha bondade omnipotente
continua no altíssimo propósito de vos conceder vida
desde que me considereis sempre
vosso prodigioso dono e salvador máximo
aqui fica
como a vossa abençoada sujeição
vos obriga a adorar-me dessas profundezas
reduzidas a cinquenta litros de água
equilibrada pela química dos frascos domésticos
aqui tendes
como vindes comer às minhas mãos
celestes alimentos "Made in Germany"
e me beijais os dedos
- beijos julgo eu
dentadas pensais vós -
a mim
vosso supremo destino
que regulo o paraíso onde jazeis
vos forneço a água imprescindível à subserviência
a mim
que pago o constante sacrifício eléctrico da bomba do ar
da pedra difusora
do termostato e da luz fluorescente
do vosso mundo ilusório
aqui está
como eu compro tudo o que consumis
com dificuldades
mas só pelo prazer autoritário
pela vaidade abusiva de vos ver subordinados a mim
de vos possuir
só porque
queridos peixinhos coloridos
vós sois os únicos seres vivos
que me considerais
na medida do que mais ambiciono:
um super-humano
uma divindade
de aquário!
... foi assim
subtis peixinhos climatizados
em tépidas águas vegetando
foi assim
peixinhos submersos
em experimentais vinte e cinco graus centígrados
exigidos tão só ao refúgio dos olhos
massacrados pelos dias
e que apenas existis
para satisfação de imposições sociais
que vos passam entre as guelras
foi assim
que os pobres servis seres humanos
inventaram os deuses
da sua ruína.
Tercena, Outubro 1976
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