quinta-feira, 2 de julho de 2009

ODE À MERDA

Salvé!


Salvé merda!
masssa pelos corpos parida
serpente pútrida dos corpos expelida
química maravilha das mutações orgânicas

Salvé!


essencial escória a nós universalmente acostumada
convertida - assimilada - repelida

Salvé!

Salvé merda incessante e derradeira!

Todos os dias
biliões de supra-símios
metódicos - mecânicos
te dejectam à média ideal de uns escassos gramas
per capita venter
o que mesmo assim perfaz um impuro total de
- Salvé! -
inúmeros milhões de quilogramas quotidianos teus

Salvé merda da multinatural tonelagem!

convém acentuar a exclusão
das demais inferiores e incontáveis espécies animalescas
devido a escatológicas negligências estatísticas
respectivas e oportunas
pois o aumento de volume adicionado ao cheiro
atingiriam dimensões poeticamente insuportáveis

Salvé!


Salvé merda primordial

matéria preponderante - prevalecente putrefacção!
multidões de sapiens homullus por ti se estorcem
solitários - ridículos - heróicos
expostos durante prévios minutos
ao privado culto da posição sacrificada

Salvé!


Salvé merda litúrgica - sagrada!

mesmo aqueles tantos que não comem
por culpas e danos do sistema
em algo de ti se sobejam
de teus resíduos sobrevivem

Salvé!


Salvé merda explorada - espremida!

por ânsias de te conceber - suspeitos vácuos divinizam
carentes de ti - resistem - se amotinam
destroem-se nas ruas e nas guerras
se agitam - se emancipam - se revoltam

Salvé!


Salvé merda da famélica abundância
vertida em privações insustentáveis!

para te expandir
quaisquer assuntos ou interesses os excretores abandonam:
páram máquinas e conversas
prorrogam reuniões de libidinosos negócios
interrompem actos orgásticos
perdem cenas capitais de apopléticos espectáculos
abandonam lancinantes audições de comunicados governamentais
esquivam-se no auge dos furores competitivos

Salvé!


Salvé merda simbólica da urgência inadiável!

apenas a leitura alienatória é permitida
no místico e estático retiro
e por méritos teus
incontáveis folhas de livros ou jornais reaccionários
retiraram restos de ti mesma

Salvé merda indispensável para o saneamento
das inutilidades literárias!

com sérios propósitos de incentivar a industrialização tua
se lançou Deus no investimento intestinal anónimo
e para que fosses concebida sem pecado
dentro dos rigorosos cânones cilíndricos
modelares formosos ânus se esculpiram

Salvé!


Salvé merda divina - escultural
volumétrica!

e porque só catadupas de matérias primas
viabilizam as infalíveis produções em série
ordenou o grandíssimo empreiteiro
dos permanentes empreendimentos
que bastas e abundantes vezes se alimentassem
os engenhosos desumanos seres

Salvé!


Salvé merda - connosco mastigada
planetária - repetitiva!

tais doutíssimos sistemas fecais
se memoriam nos cursos liceais coprológicos
e facultativos de escatologia superior
para que segredos teus se desvendem
e se ampliem doutrinas sobre ti

Salvé!


Salvé merda científica
intrínseca substância cultural!

em cores te conservaste nas cavernas
espalmada por digitais pincéis pithecantropus
como barro te moldaram
remotas artes do paleolítico
luzes estelares te observaram
em rudes zigurates mesopotâmicos
Hamurábi te gravou no código
escribas nos hieróglifos te inscreveram
gentes de Tiro te leram em fenícios alfabetos
e graças a Noé te multiplicaste

Salvé!


por artimanhas de Helena célebres troianos te verteram
a despojos teus recorreu Semiramis
para opulências dos jardins suspensos
Nabucodonosores de Babilónias
mil epopeias tuas nos legaram
em soberbas satrapias Dário te colocou
perduraste de Zaratustra a Nietzsche
de ti se perfumava Cleópatra
por excessos teus Calígula e Nero enlouqueceram
nas Gálias Júlio César te instaurou
varreu-te Alexandre até às Índias
Pilatos em ti lavou as mãos
e pelos séculos através da História
Eufrates e Nilos te transportam

Salvé!


Salvé merda antiquíssima e clássica
soberana - épica - mitológica!

Rá e Osíris nos desertos te secaram
romanos deuses contigo se desfiguraram
trovejou Júpiter sobre ruínas do Império teu
Zeus teu pó olímpico espalhou
de ti se empederniu a concha de Vénus
por sortilégios teus concebeu Maria
mesmo Cristo e Buda decerto te jorraram
pois raros filósofos sobre ti reflectiram
mas todas as fés te idolatraram

Salvé!


Salvé merda sagrada e sânscrita
milenário mito das pirâmides e templos!

desde os alvores da cristã ordem
até ocasos dos coevos dias
mais incólume e pura te apodreces
actual - nauseabunda - prevertida
genuína - igual - genealógica

em Bizâncio te partilhou Justiniano
com promíscuos cortesãos de Teodora
Carlos Magno por ti se transcendeu
Lucrécia dos Bórgias te chamaram
bravuras de Ivan aterrorizaste
e na corte de Catarina tzarina foste

Salvé!


Salvé merda prepotente
estratégia do poder estratificado!

de honores jesuíticos impaste
durante ofícios e santos holocaustos
sacrílegos martírios tuas vítimas sofreram
e sobre ti rezam as inquisições

Salvé!


Salvé merda solene - eclesiástica
medieval fogueira dos autos de fé!

arrojadas rotas escuteiros teus lograram
para te dilatar e a teus domínios
rios de barbáries transbordaram
nos Andes - em Áfricas - nas Índias
proezas de escumalhas retumbaram
por selvas nunca antes devastadas

Salvé!


Salvé merda civilizadora
padroeira do contemplativo amor esclavagista!

mercê de fumegantes alquimias
vaporizaste imprescindíveis máquinas
submissas apenas aos interesses
do espantoso capital obstinado
Salvé!
uns tantos em teu seio prosperaram
os restantes contigo fermentaram


Salvé!


Salvé merda progressista
nervo motriz da revolução industrial
próspera geratriz do proletariado!

certeiras prosas de alguns predestinados
no cerne do organismo te atingiram
mas efémeros seriam tais propósitos
porque impropérios e demagogos exageros
afeitos às crescentes burguesias
te devolveram anteriores direitos

Salvé!


Salvé merda destronada e reíncidida
barrete frígio de supostas majestades!

em fins de Waterloo súbditos teus
um corso desterraram para Santa Helena
e com respeito à súbita Comuna
os que seguiram Thiers a ti tresandavam

Salvé!


Salvé merda adjacente aos processos sociais
ácido estigma dos brutais degredos
ignomínia das decisões finais!

ilustres gestas de aberrações papais
cofres do Vaticano te abarrotam
e já te passeaste por Castel Gandolfo

Salvé!


Salvé merda apostólica sistina
insígnia de temporais domínios!

de teus bélicos odores e gestos peculiares
se apropriaram fanatizadas hordas
sôfregas de ti - te despejaram
sobre faunas de indefiníveis Auschwitz

Salvé!


Salvé merda nacional obscurantista
mesmo quando de socialismo revestida!

mas por eslavas vastidões da guerra
cruzes gamadas honram teus exércitos
e rugas de outros rostos assinalam
memórias dos que pereceram
apenas por te terem enfrentado

Salvé!


Salvé merda espelhada no terror absoluto
suspiro da definitiva imagem!

de Itália alastraram teus pudores
até às Ibérias de ti peninsulares
onde - madre ubérrima - os decompuseste

Salvé!


tuas condutas modelares e centenárias
proliferaram nas Latinas Américas
nadando em tropicais atrocidades
e rumo ao norte avança tua mole irreversível

Salvé!


Salvé merda prodigiosa
facho do progresso em constante decadência
fétido manjar dos caudilhos!

mundial reputação deves também
à flagrante enormidade de Hiroshima
e se do Vietnam te expulsaram
persistem teus sortilégios biológicos

Salvé!


Salvé merda - atómico maná do futuro
oferto genocídio para os ávidos indefesos!

em terrenas entranhas sepultada
ressuscitas nas propícias seivas
de monstruosas vegetais belezas

Salvé!


te arrastas até imensidões oceânicas
assimilas microscópicos fascínios
e no espírito do plâncton te convertes

Salvé!


Salvé merda mutatis mutandis
fecunda solução da Natureza!

Nós
os homens

te trazemos e como lava te vomitamos
sobre a vítima te esmagamos
para o espaço te impelimos
e à sorte te jogamos

nós
os homens

te deitamos e com a dor te exprimimos
em silêncios te expelimos
da tua paz te expulsamos
e na verdade te agredimos

nós
os homens

te levamos e nas raças te segregamos
nas pátrias te fabricamos
te expomos à ignorância
em ódios te dejectamos
te temos
e no corpo te possuímos

nós
os homens

te somos e na História te conservamos
com fortunas te compramos
do sangue te retiramos
à terra te devolvemos
em ti nos precipitamos
sob a morte te enterramos
e te fazemos em tudo

Salvé merda!
abdominal mandamento
do excremento universal

Tercena, Novembro 1983









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