quarta-feira, 1 de julho de 2009

A CEIA



I

O Natal
esse pretexto anual
que para tantos não passa dum dia incolor como os outros
trezentos e sessenta e quatro
- cinco nos bissextos -
e que para os supostos privilegiados são vários dias
plantados e regados

o Natal
essa data que os homens fingem recordar
mas apenas festejam
por há muitos muitos anos ter nascido alguém
que se fez homem
para discursar uma doutrina singular
e depois morrer ignobilmente sacrificado numa cruz
- com ferros e sangue numa cruz -

o Natal
essa hipócrita comemoração de aniversário
não tem razão de ser
porque o homenageado jamais recebeu os parabéns
porque eles tornariam a cometer o crime do Gólgota
(oh! Skapinakis vejo o teu Manólios)
nesse formosíssimo personagem
que pregou uma doutrina
bastante singular...

II

Nas mansões dos supostos privilegiados
reina a desordem exposta aos grandes dias
fumegam vaporosos espumantes genuínos
pairam nuvens de havanos
explodem risadas de bem-estar e tudo ter
perante o fulgor sórdido da baixela opulenta
a cujos perfumes gastronómicos
piedosas mandíbulas não resistem
massacrando as carnes e os doces
com evidente sofreguidão sensual
embora disfarçando o cio da gula
mercê de certos gestos afectados como por exemplo
o dedo mínimo esticado ao segurar o copo ou o talher
- deliberação comprovativa duma extrema falsa elegância
da mais baixa diplomacia -
para escancarar o tal anel brilhantemente exagerado
ou o pudor dum discreto cerrar dos lábios
enquanto lá dentro se tritura
furiosamente

III

Todos os supostos privilegiados querem
trazer o Menino nos braços
- os homens sorriem-lhe
as damas abrem-lhe os colos
deitam-se a seu lado junto ao berço de enfeites fictícios
rezando-lhe torrões de açúcar na boquita
para o adormecer
sob o soberbo presépio que imaginaram
onde a miséria exige conforto
a fome - esbanjamento
o medo - leviandade
não vá o Menino ser mauzinho
e ter alguma birra sobrenatural
que cerceie irreparavelmente os prazeres
da ociosa e agradabilíssima existência
(compreensível procedimento dos supostos privilegiados
que deste modo agradecem à providência - deus -
o tê-los colocado nos bairros e nos cargos de elite
onde basta premir o botão inferior
para que todos os servos surjam
automáticos
às mãos cheias
com excepção do mordomo
ausente no dia da folga semanal)

IV

Claro
os supostos privilegiados
recebem generosas ofertas na quadra natalícia
tais como vinhos de especial colheita
espumantes legítimos
esquisitos licores
e perús
esses - também - eternos sacrificados
em prol do amor universal

sei de alguém
(e só por curiosidade o refiro)
que monopolizou doze perús
nesta ligeira época
então
para que restasse íntegra a noção de igualdade
enviou três a um íntimo
que tinha açambarcado apenas seis

assim se solidarizam
os agiotas da sociedade

V

Sei também sobre homens e mulheres
e muitas mais crianças
- crianças que comparo a Jesus
eu cá sei porquê -
que nunca desfrutaram uma árvore simbólica
ou um presépio na penumbra
nem sequer um brinquedo consertado
mas o Divino Menino esteve lá
no pão e no vinho da ceia triste
molhou os lábios
e deixou um beijo de luz
sobre os mesmos pesadelos
dos ternos infelizes

Lisboa, Dezembro 1962




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